Ensaios sobre Cinema, Filosofia e Educação

Notas pessoais sobre cinema, filosofia e educação

quarta-feira, dezembro 10, 2008

A vida é mais do que a soma de suas partes: comentários sobre o filme “O mundo de Leland”

“O mundo de Leland”, do original “The United States of Leland” foi produzido em 2003 e dirigido por Matthew Ryan Hoge, um diretor pouco conhecido. Possui apenas dois trabalhos em seu currículo: além do filme aqui em questão, dirigiu também em 1999, “The Storage” que nem mesmo chegou ao Brasil.

A história contada, além de não despertar muito a atenção, transmite uma idéia completamente diferente daquela que fica depois que vemos o filme.

Leland, um rapaz de 15 anos, mata um menino deficiente mental. Por isso, é enviado a um internato juvenil. Lá ele conhece Pearl, um professor que sonha ser escritor e vê na história do rapaz um certo potencial para se tornar o enredo de uma obra de ficção.

Por essa descrição, a história parece simples e banal, algo como um drama psicológico da mesma linha de “O gênio indomável”, ou alguma coisa parecida.

Entretanto, se eu tivesse que descrever esse filme em uma única palavra, eu diria: Surpreendente! Justamente porque me espantou a profundidade dada ao tema, e porque, na minha leitura, é possível identificar na história traços das idéias apresentadas pela filosofia existencialista. Não sei bem se é coincidência, mas consta que Hoge, quando estudava na Horizon High School, teve contato com a obra do escritor e filósofo existencialista Albert Camus.

Sabe-se que a preocupação central do existencialismo, de um modo geral, é a existência, considerando que a existência humana, especificamente, não deve ser deduzida a priori, isto é, não se pode concluir sobre um modo ideal de vida para as pessoas, assim como não é correto considerar uma suposta essência à raça humana que determine a forma e as condições ideais para a vida.

Eu entendo que este é o princípio que serve de espinha dorsal ao filme. Em um certo momento, Leland fala sobre o que fizera, sobre o assassinato do menino que era deficiente mental. Ele diz:

Leland: Eu sei o que eles querem de mim. Querem um motivo. Alguma coisa para amarrar com um lacinho e enterrar no quintal. Enterrar tão fundo como se nunca tivesse acontecido. Eles querem que eu diga que me arrependo. Que foi culpa da minha mãe. Quem sabe do meu pai. Ou que aconteceu por causa da TV. Ou de um filme. Ou de uma porcaria qualquer. Ou então por culpa de uma garota.

É interessante notar aqui o posicionamento existencialista frente a acionalidade que se instaura na sociedade ocidental a partir do século XVIII. Vale dizer que o modo científico de pensar do homem contemporâneo é marcado pela linearidade. Normalmente estabelece-se um certo fim e as ações humanas consistem em persegui-lo. Porém, essas ações são prescritas pela sociedade tal como procedimentos que precisam ser cumpridos para que tal fim seja possível. Assemelha-se ao processo científico de dominação da natureza através da construção de ferramentas que permitem ao homem superar suas limitações naturais. O sucesso de tal empreitada depende do cumprimento religioso do método.

É sobre isso que consiste a estranheza de Leland observando que nesse mundo tudo precisa ter uma explicação, uma causa, pois se o comportamento é prescrito, se o objetivo é sempre um fim encerrado em si mesmo, é natural que haja um processo que leve a tal conseqüência. Nessa lógica, a razão das coisas é compreendida a partir de sua desconstrução analítica, ou seja, o significado das coisas é a soma de suas partes.

Entretanto, uma coisa é o processo de construção de uma ponte, por exemplo, e outra coisa totalmente diferente é a que consiste as relações humanas. Um engenheiro que venha negligenciar as leis da física e decida manejar o concreto e o aço do jeito que bem agrade seus instintos, está condenando sua obra a destruição e com ela talvez muitas vidas humanas. Nesse caso, o cumprimento rigoroso de parâmetros mecânicos e das regras técnicas não podem estar sujeitas a escolhas subjetivas. Trata-se de um imperativo, de uma necessidade.
Porém, o grande problema é que a racionalidade científica extrapola os limites ao qual foi destinada. Logo na infância, cada indivíduo já recebe uma carga de lições morais, uma lista do que pode e do que não pode praticar. Passa a fazer parte de uma comunidade religiosa e com isso recebe mais um pacote de atribuições comportamentais. Com o tempo, pautado por determinações econômicas, também é incitado a desenvolver aspirações bem específicas quanto ao seu futuro e com isso passa a ver unicamente nos estudos intelectuais o caminho para a obtenção do seu sustento material. Com isso, parece que a vida já é dada no momento do nascimento. Ao indivíduo cabe apenas executá-la.

Em sua obra “O Mito de Sísifo”, Camus faz uma interessante metáfora sobre a existência humana. Ele diz o seguinte:

Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até o cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

[…] É o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos Infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.


Sísifo, portanto, é condenado a levar uma pedra até o cume de um monte donde ela descerá rolando até a planície. O condenado deve então descer o monte e novamente levar a rocha até o alto que por sua vez novamente virá a baixo. Seu destino é realizar esse trabalho inútil e absurdo por toda a eternidade.
Camus vê em Sísifo o homem contemporâneo que vive no absurdo, fazendo um trabalho inútil. O tipo de civilização ao qual cultua e está amarrado o homem contemporâneo incita o pensamento isento de bifurcações e sinuosidades. Tudo precisa ser exato, previsível, seguro, de resultado claro e certo. O utilitarismo das ações que resulta desse modo de vida favorece a atividade econômica desse mundo exigindo o cumprimento de regras que oprime e leva cada indivíduo a exaustão frente as exigências apresentadas. Com o avanço da tecnologia não seria necessário que se trabalhasse tanto. Mas o jogo econômico exige que se trabalhe o máximo possível para que as pessoas possam comprar cada vez mais para então fazer aumentar a demanda, e aumentando a demanda, mais empregos e mais trabalho são necessários, e assim ocorre indefinidamente a ciranda financeira.

Em um tom mais populesco, o homem contemporâneo presta-se ao papel de cão que corre atrás da própria cauda. Leland percebe isso e durante todo o filme aponta as contradições no comportamento das pessoas que denunciam o absurdo, a falta de sentido de tal modo de existência. Há uma sequência de cenas em que dois personagens comentam sobre Albert Fitzgerald, escritor famoso, pai de Leland:

A: Qual o problema de Fizgerald?
B: Vejamos, ele é alcoólatra, misógino, …
A: Ele sabe escrever.
B: Ele é desprezível.
A: Desprezível? Ele é um desgraçado, e daí? Não se julga um escritor pela sua vida mas pelo seu trabalho. O padrão moral é diferente nesse caso.

A visão científica do mundo não permite a visão de um todo integrado, mas apenas os fins e a maneira para alcançar esses fins. A estratificação das funções é tanta que elas acabam perdendo a ligação com um sentido maior, pois a razão de existirem é puramente instrumental, para alcançar um certo fim. Então há atividades para todas as coisas e não necessariamente estão ligadas umas as outras. As ações que visam os negócios, por exemplo, não precisam ser morais, porque não visam a moralidade, mas sim a transação mercantil.
Se o objetivo é a moralidade, pra isso existem as religiões, as fantasias das fábulas, narrativas, ficções românticas literárias, cinematográficas, etc.
Ele também mostra como esse modo vazio de viver leva à superficialidade do indivíduo, à mais pura imbecilidade e mediocridade. Em um certo momento, Fitzgerald é reconhecido, mas a pessoa acredita que ele é um ator, provavelmente porque o viu na TV em algum programa de entrevistas. A fonte de conhecimento do homem contemporâneo, se é que se possa chamar isso de “conhecimento”, é a TV, Internet, no máximo as manchetes de jornais. Aí está um dos motivos da idiotização profunda a qual submerge a humanidade. É interessante a resposta que Fitzgerald dá a pessoa que o indaga:

Pessoa: Você não é ator?
Fitzgerald: Todos nós somos!


Essa também é uma condição de vida no mundo contemporâneo. É necessário vestir máscaras e estas existem de todos os tipos, máscara de estudante, de profissional, de religioso, marido, esposa, filho. Em um mundo estratificado cujas funções não possuem ligação entre elas, é necessário o uso de máscaras que são mais ou menos apropriadas conforme as circunstâncias. Todos são atores!

O filme mostra isso através do comportamento dúbio do professor que mantém um caso amoroso secreto com uma colega de trabalho mesmo sendo comprometido com outra pessoa. Conforme Leland questiona o seu comportamento, o professor revela a imensa fragilidade das convicções do homem dilacerado, especialista, do mundo contemporâneo. Veja que diálogo interessante:

Professor: Eu sou de carne e osso cara!
Leland: É engraçado como as pessoas dizem isso depois que fazem alguma coisa ruim. Você não ouve alguém dizer "eu sou de carne e osso" depois de salvar uma criança de um prédio em chamas.

É interessante como tudo tem que ter um motivo e esse motivo sempre deve ser apropriado ao mundo fantasioso em que as pessoas vivem. Quando fazem alguma coisa ruim, é porque as pessoas são de carne e osso, quando fazem algo nobre, é porque serviram de instrumento a uma força sobrenatural ou porque estão acima da condição natural humana, rumo a condição angelical. Nesse mesmo sentido, ele afirma:

Leland: A última vez que eu chorei foi no enterro da minha avó. Foi mais uma coisa que me marcou. Eu lembro de um outro menino, um primo meu. Sentado lá, bem comportado, com as mãos dobradas sobre o colo. Eu achei que era pra a gente ficar daquele jeito, eu não queria que ele me visse chorando. Mas as lágrimas rolaram mesmo assim. Foi aí que eu descobri que as lágrimas não fazem um morto voltar a viver. E aprendi mais uma coisa sobre as lágrimas. Que elas não fazem alguém que não te ama mais voltar a te amar. É a mesma coisa com as orações. Eu queria saber quantas vidas são desperdiçadas chorando e rezando para “deus”. Na minha opinião o “diabo” faz mais sentido que “deus”. Pelo menos eu entendo porque as pessoas querem ele por perto. É bom ter alguém para culpar das coisas ruins.

Leland mostra em várias partes do filme o comportamento inexplicável, como ocorre meramente por convenções e como a busca obsessiva por um motivo para todas as coisas, por uma causa, cria imagens como “deus”, “diabo”. Ele diz:

Leland: Vai ver “deus” existe porque as pessoas se assustam com as maldades que fazem. Elas acham que “deus” e o “diabo” estão sempre disputando o jogo de cabo de guerra entre eles. E elas nunca sabem de qual lado vão terminar. A idéia do cabo de guerra explica porque mesmo que as pessoas tentem fazer alguma coisa boa acaba não dando certo.

Leland mais uma vez mostra a falta de sentido dessa existência a qual o homem se submete. Ao mesmo passo que ele serve a um “deus”, seu comportamento não reflete tal moralidade. Veja como ele narra algo que lhe ocorrera quando criança e viajava sozinho em Nova Iorque:

Leland: Mas chegando lá eu não arrumava um hotel. Ninguém queria me dar um quarto. Ficavam preocupados em dar acomodação para um garoto. Mas parecia que não se incomodavam de mandar um garoto pra rua sem ter um lugar pra ficar.

Esse apontamento ocorre também quando ele faz um comentário sobre os terremotos:

Leland: Você sabe o que é engraçado nos terremotos? Depois de um terremoto você vê umas pessoas tirando outras dos escombros e abraçando uns aos outros porque vêm os sapados de uma menina na rua e não vêm nenhuma menina por perto. E aí alguns dias depois esquecem tudo isso.
Professor: Mesmo assim isso mostra que existe bondade nas pessoas.
Leland: Pelo menos durante os terremotos!


Veja como Leland mostra o quanto a vida é absurda, o quão ilógica ela é. Como as coisas não fazem nenhum sentido! Como há incoerência por toda parte! Veja isso em mais esse diálogo entre ele e sua namorada:

Leland: Eu costumava roubar um doce ou brigar com minha mãe. Brincava sozinho, esse tipo de coisa. E então eu ficava com uma sensação ruim. Ainda me lembro como ela ficava de cara feia olhando pra mim.
Becky: Eu não acho que ficam de cara feia. Eu acho que elas tomam conta da gente. Tomam conta de nós e cuidam para que nada de ruim nos aconteça. Cuidam para que dê tudo certo.
Leland: Então por que quase nada dá certo na maioria das vezes?

Leland nunca pensa de forma lógica, nunca se satisfaz com sentenças exatas e vazias de significado. Veja como são interessantes algumas de suas falas:

Professor: Aconteceu alguma coisa [em Nova Iorque]?
Leland: É uma grande cidade, sempre acontece alguma coisa em Nova Iorque.

Garoto: Em Veneza não há nenhuma rua, não é? Só água e esgoto.
Professor: Canais e esgoto! Sabe? Eles não permitem carros na ilha.
Leland: Lá dá para ouvir os passos.
Professor: Como é que é?
Leland: Já que não permitem carros, quando você anda dá para ouvir os passos.

Becky: Quero que você diga que vai estar sempre aí.
Leland: Sei lá! As vezes eu estou em entro lugar.
Becky: Só me diga que tudo vai ficar bem.
Leland: Mas eu não posso garantir que tudo vai ficar bem.
Becky: Eu sei mas as vezes você diz coisas que não são exatamente verdade mas você diz assim mesmo porque você quer que seja verdade então isso basta.

É espantoso como duas formas diferentes de ver o mundo ficam tão evidentes quando colocadas lado a lado como foi feito nesse filme. No entanto, tal modo de ser traz problemas para Leland. Isso o torna uma pessoa incompreensível para as pessoas acostumadas sempre a agir em correspondência com aquilo que é aparente. Um diálogo entre ele e sua namorada mostra isso:

Becky: Eu estou confusa. Eu não sou como você. Você diz que estou te magoando mas parece que não faz diferença.
Leland: Faz diferença!
Becky: Mostra pra mim!
Leland: Mostrar como? Gritar com você? Bater em você? É o jeito de eu mostrar pra você que faz diferença?

O mundo se torna complicado para uma pessoa assim, que não age conforme o que se considera normal e conveniente. Leland se considera livre para agir como bem entende porque acredita que não são as convencionalidades o que é importante mas sim as coisas em si mesmas que importam. Nesse caso ele não vê porque tem que demonstrar seu amor pela sua namorada como todos fazem. Ele tem seu jeito de próprio de amar.

Se esse filme não possui inspiração de Camus, mais impressionante ainda é quantidade de coincidências. A obra “O Estrangeiro” está repleto de situações semelhantes das que estão no filme.

Meursault, o personagem principal, sente-se como um estrangeiro no mundo. Ele fica impressionado com a falta de sentido das coisas e do modo como as pessoas se apegam a valores e conveniências. Ele diz:

Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe, corre o risco de ser sentenciado à morte.

Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho, e que, afinal, nada mudara.

Aqui se encontra o mesmo sentimento de estranheza que Leland possui com relação a forma de demonstrar o amor, a dor, o medo. Leland diz que coisas como choro, orações, nada disso faz uma pessoa morta voltar a vida da mesmo forma que dizer “eu te amo” não faz diferença alguma para um relacionamento entre namorados. Enquanto que as pessoas costumam dizer que o amor é uma coisa do coração, Leland diz que o amor é uma coisa da língua, ou seja, não passa de uma palavra.

Mas voltemos a comparação da história do filme com Camus. A vida de Meursault parece ainda mais absurda quando, aparentemente sem explicação, ele mata um árabe e é condenado a morte. No momento em que estava sendo julgado ele ouve a sirene do vendedor de sorvetes que estava do lado de fora do prédio. Nesse momento ele se lembra da sua vida e tudo se torna ainda mais confuso e sem sentido:

No fim, lembro-me apenas de que, na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto meu advogado continuava a falar, eu ouvia o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes. Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me, então, à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela, para dormir. Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo.

Portanto, considerando sua vida absurda e sem sentido, Meursault posta-se a recordar os momentos que lhe foram prazerosos. Camus diz:

Todo o problema, ainda uma vez, estava em matar o tempo. Acabei por não me entediar mais, a partir do instante em que aprendi a recordar.

Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar 100 anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar.


Leland diz coisas bastante parecidas, inclusive também fala algo sobre sorvetes. Veja:

Leland: Quando digo que não me lembro daquele dia não estou mentindo. Antes estivesse mas não estou. Às vezes as coisas mais importantes desaparecem. E desaparece de tal forma como se nunca tivesse estado lá. É estranho as coisas que ficam na nossa cabeça. Mas eu vou te descrever de traz pra frente aquele dia em que eu tinha 5 anos e meu pai comprou um sorvete de casquinha vagabundo. Eu sei dizer até o sabor do sorvete. Ele era rosa com gosto de chiclete. E até me lembro da garota que me serviu. O cabelo dela era vermelho como fogo. Disso eu me lembro como se tivesse acabado de acontecer. Mas não me lembro do outro dia. Pelo menos não do jeito que eles insistem comigo. Eu me lembro que foi o primeiro dia quente da primavera. Eu me lembro da sensação do sol no meu pescoço. Mas só isso.

A existência é tão absurda que são momentos efêmeros como esses que a faz ser suportável. Enquanto Becky tenta arrancar certa lógica de Leland, ele diz que acha bom o cheiro de morango de seus cabelos. Apenas sensações simples como essas importam. Coisas como lógica, teorias, são criadas pelo homem para o homem. O dia que não existir mais humanidade não existirá mais nada disso.
O grande problema é que, a consciência, aquilo que representa a superioridade humana em relação a todo o resto, passa a ser o seu grilhão existencial, porque consciente da sua vida inútil, absurda e sem sentido, o homem é tomado pela angústia. Paradoxalmente, a descida de Sísifo à planície para novamente pegar a pedra é mais dolorosa pra ele do que o próprio esforço físico necessário para carregá-la novamente para o cume do monte, porque é na descida que Sísifo reflete sobre sua condição. Veja o que diz Camus:

É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo. Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.

Por isso, para os existencialistas, o fato de ter consciência, faz do homem um ser livre. “Eu estou condenado a ser livre” diz Sartre. Isso implica que o homem é responsável por tudo o que faz. Mas o mundo contemporâneo oblitera essa realidade pois a especialização das funções e a forma dilacerada de ver o mundo torna turva a visão das consequências de cada ato. O indivíduo não se preocupa o quando sua atividade agride o meio ambiente e as pessoas, o quanto acentua a desigualdade social, etc. Sua obrigação não é essa.

Sartre diz que agir desse modo é agir de má fé, porque o homem é livre mas muitas vezes finge não ser livre para fugir da angústia provocada pela liberdade. Isso é muito nítido pra mim no filme em um momento em que Leland conversa com seu professor:

Leland: Como você vê o mundo Pearl?
Pearl: Cheio de possibilidades, eu acho que há muitas coisa boas, coisas positivas. E você?
Leland: Eu acho que tem duas formas de ver. Uma é como você disse, com a vida correndo bem. E quem sabe com coisas erradas que não dá pra ver.
Pearl: Qual é a outra forma?
Leland: Quando você enxerga a verdade. Ela está sempre aí. Mesmo quando tudo parece bem. E as crianças brincando. E os casais se beijando. Ela existe em tudo isso mas as pessoas em geral não enxergam.
Pearl: O que é ela? E por que não enxergam?
Leland: Como as coisas simplesmente passam. Como todo mundo que morre por dentro. A tristeza que todos sentem.

Mas Leland anda de mãos dadas com a angústia. Ele não vê sentido em nada e ainda mais é incompreendido por não manifestar as emoções como todos manifestam e não possuir o pensamento utilitário que todos possuem. Ele diz o seguinte:

Leland: Isso me cobre os olhos. É só o que eu enxergo. Digamos que as crianças estão jogando beisebol. Eu só vejo que não deixam um deles jogar porque ele conta piadas. E ninguém acha engraçado. Ou um casal apaixonado se beijando eu só vejo que eles vão ser um daqueles casais triste um dia com um enganando o outro nem olhando nos olhos. Eu sinto isso, sinto toda a tristeza deles. Sinto mais ainda do que aquele casal velho e triste e o garoto jamais vão sentir.

Nessa altura do filme, o pensamento de Leland vai se tornando mais claro para nós e o motivo que o levou a matar o menino com deficiência mental começa aparecer. Ele começa achar respostas para as coisas e com isso a ordem começa a se desenhar no caos da sua mente. Ele diz o seguinte:

Leland: A pior parte é saber que existe bondade nas pessoas. Que em geral fica enterrado bem no fundo. Vai ver temos um “deus” não porque temos medo das coisas ruins. Vai ver porque temos medo das coisas boas. Porque se “deus” não existe significa que é dentro de nós que poderíamos ser bons o tempo todo se quiséssemos. E então quando fazemos coisas ruins é porque queremos ou porque precisamos. Ou porque precisamos das coisas ruins para lembrarmos das coisa boas para começo de conversa.

Aí está a liberdade existencialista. Para Leland deveríamos ser bons porque podemos ser bons e porque decidimos ser bons, não devido a existência de um certo “deus” moral, assim como podemos também decidir não fazer coisas ruins sem ficar tentando se isentar. Nós podemos, por exemplo, ter a postura de não comprar um calçado se sabemos que ele foi confeccionado por crianças no sudeste asiático, porque se o fizermos estamos contribuindo para a desgraça e o martírio desses meninos e meninas.

Sobre o que fizera, Leland diz:

Leland: E se não der pra juntar as coisas?

Leland: Eu sei o que você quer de mim. Saber o por quê. Mas vai ver não existe, só foi alguma coisa que aconteceu.

No ápice da sua enorme angústia de ver o sofrimento sisifiano nas pessoas, ele observa Harry Pollard, o menino deficiente mental. Veja como é desconcertante o que ele diz:

Leland: As palavras que ensinavam pra ele eram coisas para se evitar. Não ensinavam palavras como morango ou beijo. Dava pra ver que ele gostava da moça que trabalhava lá. Ela sempre sorria pra ele. Comecei achar que ele sabia. Ele sabia que ninguém olhava pra ele como uma criança normal. As pessoas ou riam dele ou tinham pena. Não tinha nada que ele pudesse fazer. Ele estava aprisionado.

Ele gostava do menino, mas é importante lembrar que Leland é absolutamente livre, ele possui a liberdade existencialista. Sua forma de amar não é convencional. No caso do menino, por ama-lo e vê-lo em sua condição, Leland o liberta, mas a morte é a única forma de libertação para Harry pois ele é deficiente mental.

Até mesmo por coerência, esse filme não é linear, as cenas não navegam tranquilamente em uma linha do tempo. Passado, presente e futuro se entrelaçam de forma imprevisível. O menino morre mas na cena final ele ainda está vivo, e é uma cena simplesmente extraordinária.

Harry costumava voltar da escola pedalando sua bicicleta por uma calçada que cortava um grande jardim. Aquele era o seu caminho pra casa. Mas um dia aconteceu de um grande galho de árvore cair nessa calçada bloqueando a passagem. O menino, impedido de fazer o que todos os dias fazia religiosamente, sem saber o que fazer, ficou tentando, sem sucesso, passar por entre os galhos se machucando e rasgando sua roupa. Leland, que estava por perto, retirou o menino dali, abraçou-o carinhosamente, e disse: “Calma, está tudo bem. Tudo vai ficar bem. Eu prometo.”

Pra mim ficou muito claro que Harry sou eu, você, todos nós que tendo a mente entorpecida por necessidades infundadas e imersos em profunda tristeza pelo absurdo da vida, não sabemos traçar nosso próprio caminho tendo sempre que ser conduzidos para o destino que a sociedade nos manda. Quando algo inesperado surge, como por exemplo a filosofia profunda de Camus e Sartre, bloqueando a passagem, ficamos nos debatendo desnorteados sem saber o que fazer.

Para quem ainda tem dúvida da influência de Camus nesse filme, deve ler esse importante trecho:

Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado.

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.


Por que julgar a verdade como necessária? Talvez a própria condição para a vida seja a ausência da verdade. A vida é mais do que a soma de suas partes, mas essa idéia é insuportável.