Ensaios sobre Cinema, Filosofia e Educação

Notas pessoais sobre cinema, filosofia e educação

quarta-feira, julho 30, 2008

A arte de criticar a arte


Cozinha / Kitchen, upload feito originalmente por Cristiano de Jesus.

"Imagine [...] que estamos olhando um jardim através do vidro de uma janela. Nossos olhos se acomodarão de maneira que o raio da visão penetre o vidro, sem deter-se nele, e vá fixar-se nas folhas e folhagens. Como a meta da visão é o jardim e até ele é lançado o raio visual, não veremos o vidro, nosso olhar passará através dele, sem percebê-lo. Quanto mais puro seja o vidro, menos o veremos. Porém, logo fazendo um esforço, podemos prescindir do jardim e, retraindo o raio ocular, detê-lo no vidro. Então o jardim desaparece aos nossos olhos e dele só vemos uma massa de cores confusas que parece grudada no vidro. Portanto, ver o jardim e ver o vidro da janela são duas operações incompatíveis: uma exclui a outra e requerem acomodações oculares diferentes [...] Pois bem: a maioria das pessoas é incapaz de acomodar sua atenção ao vidro e transparência que é a obra de arte; em vez disso, passa através dela sem fixar-se e vai revolver-se apaixonadamente na realidade humana à qual a obra alude". Ortega y Gasset (1883-1955)


O ato de interpretar um obra de arte, seja ela de qualquer natureza, assume diferentes formas ao longo da história. Entretanto, isso não impede que ao longo do tempo se acumule teorias sobre estética e filosofia da arte que possam orientar os observadores.

Entretanto, não quero entrar muito em detalhes sobre essas teorias, embora sejam muito interessantes. Eu apenas chamo a atenção para esse tema relativo aos dias atuais.

Eu percebo que, em qualquer momento em que se exija a interpretação, seja de um texto, de uma fotografia, de uma filme, etc, a atitude predominante por parte de quem interpreta, seja entre um observador comum ou mesmo entre críticos de jornais e revistas, é a de um juiz que, a partir de certos métodos e critérios, determina o veredito: a obra é ruim, regular ou boa.

Essa postura, ao meu ver, praticamente transforma o ato de interpretar numa ciência em que são equacionados elementos sobre os quais são submetidas as obras e, a partir disso, pesando seus acertos e tropeços, obtém-se seu valor.

Pois bem, isso dificilmente causa alguma estranheza visto que essa postura, no meu entendimento, possui raízes bem definidas na época em que vivemos. Trata-se de uma atitude própria do homem contemporâneo, pós-moderno.

Explico-me. Nós vivemos a era mais científica e racionalista de todos os tempos. Principalmente após a Revolução Industrial, o comportamento humano se tornou especializado e metódico. Isso traz benefícios, garante a sobrevivência e coisas como conforto, o progresso tecnológico, e outros.

Mas esse comportamento excessivamente procedimental também provoca outros fenômenos. As pessoas passam a ter dificuldades imensas de mudar uma certa realidade ou mesmo de viver de forma diferente a do padrão exigido pelo sistema racionalizado. Primeiro porque ninguém tem o domínio do todo mas apenas da atividade que realiza, que sozinha não tem sentido algum, segundo porque a necessidade material uma hora ou outra vai clamar por seu suprimento, isto é, ou o indivíduo se adequa ou vai pagar o preço com privações de todos os tipos por se comportar como um extraterrestre.

Um exemplo bom para ilustrar essa reflexão é pensar um pouco sobre o que é natural e o que é construído pelo ser humano. Uma montanha ou um pico é natural, é dado pela natureza. Se pretendemos escalá-lo, ou usamos os equipamentos e procedimentos necessários ou enfrentamos sérias dificuldades podendo mesmo pagar a ousadia com a vida.

Agora se pensarmos em sistemas de governo, sistemas econômicos, edifícios, máquinas, veículos, tudo isso são criações humanas e, portanto, podem ser transformados, repensados.

E o grande problema, por motivos que eu já mencionei, é que a postura mais conveniente e portanto predominante é a de encarar as criações humanas como se fossem naturais, como se fossem dadas, cabendo a nós apenas operacionalizar a realidade.

Ora, se isso fosse verdade não haveria o crime organizado. Veja, por exemplo, o filme "O Poderoso Chefão". A máfia praticamente cria um mundo paralelo com um outro governo, com outras regras, como outras leis, etc. Assim sendo, eu reflito se algo significantemente bom pode ser criado a partir de uma mera adaptação. Não apenas é possível mas muito é necessário também pensar em outras formas de civilização.

De qualquer modo, esse aspecto de nossa época interfere e muito no ato de interpretar. Eu lembro bem do meu tempo em que eu estudava no ensino médio e pré-vestibular. Eu sempre ia muito mal nas avaliações de redação. A professora sempre dizia que eu escrevia muito bem mas que eu fugia muito do assunto. Pelo o que eu percebo, esse "problema" me persegue até hoje. É raro alguém que leia os meus textos não diga algo parecido pra mim.

Mas o motivo da minha insistência, mesmo pagando com notas baixas nas avaliações, é o meu incômodo com a forma como sou interpretado. Eu vejo que essas professoras de redação não procuram pensar junto comigo, junto com o meu texto. Elas nunca procuram entender o processo de gênese do raciocínio. Simplesmente tentam enquadra-lo num esquema de interpretação. Se o texto segue bem as regras a nota é boa caso contrário, é lixo. A interpretação é metodizada é o método ganha mais importância que o próprio autor.

Não pense que isso acontece apenas com pobres mortais como eu.

Como eu gosto muito de cinema e fotografia, eu leio sempre críticas de obras desse tipo. Eu vou ilustrar a minha reflexão comentando uma crítica de cinema que eu li e que pra mim é exemplar.

O filme criticado era "Diamantes de Sangue", dirigido por Edward Zwick. O crítico de cinema classificou o filme como "péssimo" pois o considerava oportunista fazendo um espetáculo de ação usando como pano de fundo uma tragédia humana que envolve a exploração criminosa de diamantes em alguns países da África.

De fato, o filme não é nenhuma obra de arte e o crítico tem sua parcela de razão em sua observação. Entretanto, dias depois que eu li essa crítica eu li em uma revista especializada uma entrevista com o diretor e os produtores do filme. Os produtores disseram que o objetivo deles não era outro senão o entretenimento, ou seja, eles investiram uma grana e queriam o retorno nas bilheterias. Simples assim. No entanto, eles complementaram que todo e qualquer tentativa de fazer o filme ganhar relevância social veio do diretor.

Bem, eu vejo que dado as enormes restrições de ação criativa que possuía o diretor, o filme até que cumpriu o seu papel no sentido de alerta para um problema real.

A própria mania de dar uma nota para a obra é uma obscenidade ao meu ver. Eu entendo que não há o que gostar ou não gostar. Há um ponto de vista o qual se pode concordar ou não. No máximo se poderia questionar algo sobre a estrutura epistemológica da obra, ma isso trata de algo que não interessa muita gente em uma época em que se espera soluções prontas e fórmulas fáceis para tudo.

Eu vejo, portanto, que esse é um exemplo daquilo que ocorre quando o observador de uma obra qualquer não respeita o autor, quando não se preocupa em pensar junto com o autor deixando um pouco de lado seus interesses pessoais.

Eu entendo que o filósofo espanhol Ortefa y Gasset sintetiza bem toda essa discussão com sua metáfora do jardim.

Sobre a fotografia em questão, eu creio muito que se alguém fosse chamado a se manifestar sobre ela, diria algo como: "ora, o que eu tenho a ver com panelas e apetrechos de cozinha?" e não comentaria nada além da técnica fotográfica e de preferências pessoais. Ou seja, o observado se ateve exclusivamente ao o que ele vê de imediato, ao jardim de Ortega y Gasset.

Entretanto, permita-me comentar um pouco sobre essa foto e tentar exclerece-lo, ainda parafraseando Ortega y Gasset, sobre o vidro, que é a arte, ou pretensa arte, propriamente dita.

É importante dizer em primeiro lugar que sou fotógrafo amador. Eu busco o aperfeiçoamento técnico mas tenho minhas limitações e dificuldades como qualquer amador.

A minha prioridade é sempre usar a fotografia para contar uma história através da imagem e tento fazer isso sempre através de metáforas.

Eu quis refletir, através dessa fotografia, por exemplo, a questão da necessidade. A propaganda, que é uma linguagem comum em nossa época, vende o progresso tecnológico e a modernização como uma necessidade imprescindível. Com isso, o grande desejo de muitas famílias é ter uma cozinha planejada e equipada com os mais sofisticados móveis, eletrodomésticos e utensílios.

Bem, a cozinha da foto é real, não é um cenário construído em estúdio. Eu quis enfatizar isso ainda mais utilizando luz natural. Eu poderia usar um flash para alcançar uma maior definição e textura dos objetos, mas o meu objetivo, na verdade, era buscar o maior realismo possível e mostrar que a propaganda é falsa. Essa cozinha proporciona perfeita condição de vida para aqueles que a utilizam, mesmo não havendo parafernálias eletrônica e mesmo não obedecendo a estética convencional almejada pelas massas.

A cozinha em questão é da casa de minha avó, onde eu nasci e morei até os meus sete anos. Hoje eu tenho 34 anos e quis registrar um pouco da personalidade dos meus avós paternos. Ela sempre foi assim desde quando eu era criança. Portanto ela provoca em mim reminiscências emocionais que são praticamente impossíveis de serem verbalizadas, ainda mais pelo fato da caneca ter sido de um dos meus maiores ídolos, meu avô já falecido.

É impressionante como as coisas da casa da minha avó resiste ao tempo e proporciona a ela uma vida digna. Mesmo após o meu avô ter falecido ela manteve a caneca no mesmo lugar onde ele deixava. Imagino o que isso deve representar pra ela.

Tudo isso também me lembra do filme "Cinema Paradiso". O filme discute sobre a avalanche destruidora da "modernização" e do "progresso" que não deixa nada em pé daquilo que é histórico. Para que serve o simbolismo histórico para o avanço tecnológico? Para progredir a ciência precisa manter os olhos no futuro e não no passado! Essa é a premissa fundamental da nossa atual sociedade.

Mas veja como essa lógica é devastadora para as emoções e para a criatividade. Assim como no filme em que o personagem Totó volta para a sua cidade natal e vê o cinema que freqüentava destruído, as pessoas que conhecia envelhecidas, os mais jovens sempre centrados em si mesmos, andando pelas ruas ziguezagueando entre os carros, eu também volto sempre a minha cidade natal e tenho a mesma sensação. Vejo as antigas ruas de paralelepípedo asfaltadas, as pessoas totalmente modificadas pela ação impiedosa do tempo, os lugares que eu freqüentava, que milagrosamente ainda existem, tomados pela ferrugem, pela poeira, pela destruição.

Apenas a casa onde eu vivi a minha saudosa infância está ali, intacta. Materialmente eu não sei até quando ela ainda persistirá. Na minha fotografia ela permanecerá ainda por algum tempo.

1 Comments:

Blogger Bruno Pira said...

olá amigo.
não te conheço.
cheguei aqui por uma procura simples no google e adorei o texto.
pretendo ler outros textos seus em breve e degustar de suas fotografias.
por hora é isso.
um forte abraço
fique na paz

23:10  

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