Ensaios sobre Cinema, Filosofia e Educação

Notas pessoais sobre cinema, filosofia e educação

terça-feira, julho 25, 2006

O embuste do merecimento nas grande empresas contemporâneas: comentários sobre o filme “Em boa companhia”

Embora tenha sido lançado em 2004 nos Estados Unidos, o filme “Em boa companhia”, de Paul Weitz - mesmo diretor de “American Pie” -, estreou no Brasil apenas em Julho de 2005. O ponto alto desta comédia romântica é a precisão com que o autor consegue retratar os diferentes aspectos comportamentais protagonizados, na vida real, por homens e mulheres de negócios, principalmente os que trabalham para grandes empresas, tanto no que toca o próprio cotidiano do mundo corporativo como também a vida pessoal e particular dessas pessoas.

Teddy K. (Malcolm McDowel) é apresentado como um executivo de grande sucesso, que dirige com talento e visão suas empresas. Encara a tecnologia da informação como importante ferramenta de gestão, que possibilita e viabiliza sua clara estratégia de atuação no mercado, isto é, a “promoção cruzada”. Por isso promove fusões, as vezes entre empresas de diferentes ramos, com o objetivo de que operem de forma sincronizada e alcancem os consumidores nas mais diferentes formas. Nas próprias palavras de Teddy K.:

- Sinergia. O que isso significa? Por que um negócio vai bem com ela e afunda sem ela neste novo oceano de megabytes, streaming vídeo e satélites?
- A cada dia, o mundo se torna mais complexo. E para sobreviver num mundo complexo precisam
os de vínculos complexos para interagir com ele.
- O que estamos construindo aqui? Uma empresa? Ou estamos construindo um novo país sem fronteiras nacionais? Uma nova democracia para o consumidor! Uma nova democracia com um novo eleitorado!
- Vídeos musicais em 24 horas em Kuala Lumpur. Computadores com peças fabricadas no Japão, Groenlândia, Idaho, Índia. Um anún
cio de refrigerante saindo simultaneamente em sete diferentes continentes. O Dalai Lama comendo seu Krispity Krunch (espécie de cereais) enquanto coloca preces na Internet ...


Teddy K. profere, neste pronunciamento, as formas claras de um jogo. Um jogo que é possível em uma sociedade de consumo, que possui no desenvolvimento tecnológico e no acúmulo de riquezas o sinônimo de progresso. Neste ambiente, a mente das pessoas são invadidas com uma quantidade de anúncios e informações que excede e muito suas capacidades de processamento, de reflexão.

Sob a falácia das mensagens de endeusamento do cliente, as empresas organizam as informações de modo que possam conduzir as pessoas em seus discernimentos e guiá-las até captarem concepções produzidas para perpetuar a lógica de mercado e satisfazer os interesses de lucratividade. Escondido sorrateiramente sob os pomposos e atraentes slogans bajuladores, tais como “trabalhamos para atender as necessidades de nossos clientes” ou “nosso objetivo é a satisfação de nossos clientes”, está todo um processo de criação de desejos e necessidades artificiais que acabam por estimular o consumo.

Neste mundo, a “lei de menor esforço” é a regra para qualquer empreendimento e, por isso, a leitura, a escrita, são desvalorizados por não promoverem economia de tempo e não corresponderem a um caminho fácil para o conhecimento. Assim, prevalecem como meios de comunicação em massa e como fonte de conhecimento a Internet, a televisão, o rádio, e qualquer outro recurso que provenha imagens e som.

Platão, como a maioria dos gregos, conhecia os manejos próprios das naus e baseado em um aspecto conhecido da navegação antiga, construiu uma analogia muito própria para o assunto em questão. Este filósofo afirmou que, no mar, é possível dois tipos de navegação: a “Primeira Navegação” ocorre quando os ventos estão favoráveis e, dessa forma, as velas constituem-se do o instrumento suficiente para movimentar o navio. No entanto, quando cessam os ventos, faz-se necessário o uso dos remos, caracterizando o procedimento conhecido como “Segunda Navegação”.

Platão considera a “Primeira Navegação” o processo semelhante com o qual usamos para obter o conhecimento através das sensações, ou seja, sem que para tanto seja necessário qualquer esforço. Neste contexto, a própria natureza, constituição física, biológica e psicológica se encarregam de absorver o conteúdo das mensagens, enquanto que a “Segunda Navegação” equivale-se a obtenção do conhecimento através da metafísica, isto é, operações exclusivamente mentais guiadas pelo raciocínio lógico, que neste caso, sim, demanda dedicação, disposição e concentração.

O mundo apresentado pelo filme, é um mundo que não admite a “Segunda Navegação” platônica. Todo conhecimento deve ser construído apenas por fontes de informação que estimulem as sensações através da imagem e dos sons. Além disso é um mundo que considera útil apenas as engenhocas que tornam possíveis a vida fácil e sem esforços.

O francês Auguste Comte, no século XIX, presenciando o processo de transformação de uma sociedade essencialmente rural para uma sociedade industrial, processo este provocado pela queda da aristocracia e da monarquia absolutista e a conseqüente ascensão da burguesia com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, profetizou que a sociedade cada vez mais descartaria as atividades exclusivamente mentais, especulativas, que objetivam apenas o conhecimento pelo conhecimento, sendo que ocupariam seus lugares apenas as operações observáveis e com fins exclusivamente imediatos e utilitários. Em sua obra "Discurso sobre o conjunto do positivismo", afirmara: "O universo deve ser estudado não por si mesmo, mas para o homem, ou melhor, para a humanidade". Com isso a ciência assumiria o papel de possibilitar "ordem e progresso" na sociedade. Como Comte estava sendo testemunha ocular do avanço dos domínios das idéias burguesas, o progresso para este pensador, significava, desenvolvimento tecnológico.

Mesmo passado mais de um século, o pensamento de Auguste Comte não poderia ser mais atual. No filme, Teddy K. faz da previsão de Comte, uma realidade, um jogo, sendo que seu valor, nesta sociedade, se encontra justamente na sua habilidade de lidar com as regras e criar um ambiente favorável as suas ações e aos seus objetivos. Teddy K. é um especulador financeiro que encara as empresas como objetos de investimento. Suas ações são guiadas pelo objetivo de valorizar suas aquisições para, em seguida, desfazer delas para, com isso, acumular riqueza. Tal como ocorre nas bolsas de valores, nos processos de compra e venda de ações.

Para valorizar as empresas que adquiriu, Teddy K. utiliza-se de práticas e políticas corporativas pelas quais se adaptam os funcionários. Estes possuem a ilusão de que, pelo trabalho e esforço, alcançarão posições mais privilegiadas. O status quo da sociedade contemporânea, baseado no trabalho remunerado, na concepção de que as relações de trabalho não podem ser senão entre empresa e empregado, acabam por conduzir as pessoas a encararem esta realidade sem que haja qualquer centelha de dúvida ou desconfiança sobre sua lógica.

Karl Marx, no século XIX, quando analisando a sociedade industrial e criou a sua teoria do “mais-valia”, não imaginou, provavelmente, que ela atingiria uma dimensão tão extensa e que se tornaria uma realidade absoluta em nossos dias. "Mais-valia" é o termo, na filosofia marxiana, que designa o excedente produzido por cada trabalhador, ou seja, o que consiste no lucro do empregador. Nesta época talvez, 40% do tempo trabalhado de cada funcionário já seria suficiente para pagar a matéria-prima e todas as demais despesas da sua produção, bem como o seu salário. Nos dias atuais, com o aprimoramento cada vez maior da tecnologia, das técnicas de gestão, de administração e de produção, provavelmente esta taxa tenha caído para não mais do que 5% das horas trabalhadas.

Trata-se de um estado de exploração que permite ao empregador estabelecer um perímetro do qual pode se deslocar o trabalhador. O caminho pelo qual trilha todos os profissionais dentro desta margem determinada é o que se pode chamar de “carreira” e que, como pode-se observar, é altamente controlada, sendo que por mais meteórica que ela seja, jamais vai avançar além dos limites que compete ao empregado, pois se avançar além desses fronteiras, o empregado deixa de ser empregado e passa ao lado dos notáveis manipuladores de fatores circunstanciais do mercado, algo que é extremamente raro de ocorrer.

Contudo, o trabalhador é alimentado de falsas ilusões pois recebe, como salário, um valor que está muito aquém do que produziu. Além disso, é chamado a produzir cada vez mais, através da sua ambição ao almejar cargos e através de procedimentos, símbolos e mensagens que se apresentam como recursos motivadores ao seu fraco discernimento, quando na verdade são mensagens desprovidas de qualquer substância.

Como exemplo, pode ser observado o discurso de Teddy K. que compara a sua empresa a “um novo país sem fronteiras”, uma nova democracia global interligada por recursos tecnológicos e pela Internet. Trata-se de uma mensagem de apelo bastante forte e que certamente funciona como o "canto da sereia" para mentes incautas que vêm-se encantadas pelo palavrório que articula as possibilidades evidentes da tecnologia, o mundo de facilidades almejado por todos e, de forma subscrita, a obsessão pelo lucro, que nesta altura, é vista pelas pessoas como algo natural e inquestionável.

Um outro exemplo, é o episódio em que o jovem carreirista Carter Duryea (Topher Grace), em uma reunião de trabalho, utiliza de recursos de apelo emocional para motivar sua equipe de vendedores chegando até a interpelar uma pessoa responsável pela manutenção. Qual valor estratégico pode existir no trabalho de manutenção predial para uma empresa obcecada pelo lucro? É obvio que a atitude de Carter não passa de um joguete para impressionar e motivar os funcionários a trabalharem conforme desejam a direção e os acionistas. O pobre Hector, da manutenção, é vulnerável por possuir um cargo mais simples dos presentes e por isso, Carter, com pouco esforço, consegue fazê-lo se sentir valorizado provocando-o a uma reação intempestiva de excitação o que contagia todos os demais presentes.

Carter Duryea é um carreirista pois sua ambição é tamanha que não consegue ver seu trabalho senão como um trampolim para cargos mais altos. Como produz resultados, passa por um treinamento que é oferecido pela empresa para todos os que assumem cargos de gerência. Esta é uma prática comum nas empresas, ou seja, eventos tais como treinamentos, encontros, reuniões que são reservados a poucos notáveis que muito trabalharam e produziram para fazerem por merecer. Algo curioso que ocorre no filme, talvez como forma de ironizar este procedimento administrativo, é o momento em que a esposa de Carter questiona-se se o significado de "ser treinado pela empresa" não seria algo como ser tratado tal como um chimpanzé.

Sua sensação de sucesso é tão forte que acaba se apaixonando pelo seu trabalho a ponto de deixar que ele extrapole os limites do razoável e invada a sua vida pessoal. Por isso, trabalhou até mesmo na sua lua-de-mel, deixava sempre muito tarde o escritório, não prestava atenção nos anseios da sua mulher. Até mesmo ao conversar com ela utilizava seus recursos retóricos de venda, como bom vendedor que era, além de viver sempre isolado pois não conseguia cultivar amizades, tendo em vista que as relações profissionais são sempre impessoais. Carter, definitivamente não conseguia separar seus papéis sociais de profissional, amigo, esposo, etc.

Dan Foreman (Dennis Quaid), é o oposto de Carter, possui uma família bem estruturada, protege as filhas e não mede esforços para garantir a educação delas. Mesmo tendo acabado de ser notificado sobre o seu rebaixamento de cargo e em meio as indefinições devido ao processo de fusão que a sua empresa estava passando, Dan não deixou de atender a um pedido da sua filha de jogar tênis. Este fato demonstra a sua preocupação de estar presente no seio da sua família e dedicar-lhe atenção. Suas palavras, ditas para Teddy K., demonstram, com perfeição, a forma como posiciona-se no mundo:

- Não sei se entendo a forma como o mundo está mudando ou vai mudar nosso modo de conduzir os negócios. Nós ainda vendemos um produto, não? Que esperamos que alguém precise.
- Somos seres humanos, com outros seres humanos como clientes.
- Não vejo como esta empresa é como seu próprio país. O fato de vendermos coisas não significa que devemos agir conforme nossas próprias leis. Além disso, os países, pelos menos os democráticos, têm certas obrigações com seus cidadãos, não têm?
- Como se encaixam nisso as demissões e a obsessão do lucro?


Dan acaba por tocar em questões éticas ao afirmar que a empresa não deve criar suas próprias leis, ou seja, manipular as circunstâncias a seu favor. Ao menos, ele aponta a demagogia e a hipocrisia presentes na verborragia de Teddy K. ao perceber o antagonismo dos objetivos corporativos ao mesmo tempo tão nobres e também contraditoriamente indiferentes aos problemas humanos ao buscar o lucro obsessivamente, demitindo pessoas e restruturando procedimentos incessantemente. Contudo, Dan Foreman, é o profissional que trabalha não por cargos, mas porque possui nele uma forma de desenvolver relações sociais e se recriar progressivamente.

O grande feito de Paul Weitz neste filme, sem dúvida, foi sua capacidade de retratar a vida cotidiana em um país capitalista. Mesmo assim, esta produção ainda não chegou a mencionar os efeitos da burocracia adminstrativa, chamada por Max Weber de "jaula de ferro", que se estabelece na sociedade, além dos problemas globais decorrentes da obsessão pelo lucro, dentre as quais pode-se considerar a desigualdade social dentro dos países e entre os países, os problemas ambientais, a violência, a miséria, dentre outros. A solução desses males nem sempre trazem benefícios políticos e econômicos e talvez é por isso que existem. São por estes fatos que a educação contemporânea precisa rever com cuidado suas ações pedagógicas. Muitas vezes, a educação não passa de um treinamento, de um adestramento para a formação de futuros carreiristas, de fantoches, totalmente alheios aos problemas que assolam a humanidade.