Ensaios sobre Cinema, Filosofia e Educação

Notas pessoais sobre cinema, filosofia e educação

sábado, dezembro 31, 2005

Comentários sobre o filme "King Kong"

A primeira versão de King Kong, criada por Merian C. Cooper e Ernest B. Shoedsack, foi exibida pela primeira vez em 1933. O filme pertencia ao gênero de terror e provocava medo e espanto em expectadores de todo o mundo. Todavia, esta ficção cinematográfica representa aspectos históricos e propriedades complexas da sociedade que continuam atuais mesmo 75 anos depois do surgimento do gorila gigante. Uma evidência dessa constatação é que a refilmagem conduzida por Peter Jackson, que possui mantida a ambientação da década de 30, inclusive em seus aspectos sociais e culturais, não se apresenta distante da realidade contemporânea no sentido crítico. Isto favorece que, ao se acenderem as luzes da sala de cinema, permaneça ainda uma incômoda inquietação ao tentar entender o que mudou substancialmente entre 1933 à 2005, nas motivações que conduz as práticas humanas.

O roteiro de King Kong foi criado quando o mundo capitalista ainda sofria com a chamada “Grande Depressão” iniciada com a quebra das bolsas de Nova Iorque em 1929. Até então, os Estados Unidos da América experimentavam grande euforia nos negócios com extraordinários avanços no desenvolvimento tecnológico, elevação dos níveis de consumo e aumento da produção, principalmente na indústria automobilística. Nesta época os edifícios eram os símbolos da prosperidade.

A derrocada teve início quando o processo de mecanização da indústria desempregou milhares de trabalhadores. Tal efeito teve reflexo na agricultura pois com a queda nas vendas, os produtores não conseguiam saldar suas dívidas obtidas durante a euforia. Com os estoques altos, os industriais não viam outra saída senão colocar ações no mercado financeiro para que, com o retorno, mantivessem a produção. Todavia, a falta de compradores desvalorizou significantemente os papéis levando indústrias e bancos à falência. O resultado foi um aumento ainda maior da legião de desempregados.

Os Estados Unidos como grande importador mundial e financiador da reconstrução da Europa após a 1a. Guerra Mundial levou consigo para o fundo do poço todo o mundo capitalista.

Todo este contexto histórico é percebido no filme que ainda retrata, de maneira melancólica, a invasão do comportamento mercantil entre todas as atividades humanas. Até mesmo nas artes: a paixão, os sentimentos, que sempre foram a razão de ser das mesmas, foram deixados de lado para atender aos ditames do lucro. O
Empire State Building, símbolo maior de toda esta nova ordem, foi cenário de um dos principais episódios do filme. O motivo para tamanha tristeza que imperava no espíritos da maioria dos que viviam nesta época era duplo: a miséria que assolava toda a população e a perda da identidade nas artes; a paixão sedia lugar para a lucratividade. Era o fim da dignidade humana, dos sonhos e da criatividade.

Outros filmes faziam um retrato semelhante, tais como “Luzes da Cidade” (1931), “Caçadoras de Ouro” (1933), “A Canção do Deserto” (1933), “O Rei do Jazz” (1933), “Tempos Modernos” (1936) entre outros. Também fizeram sucesso os russos “A Nova Babilônia” (1929), “Volga-Volga” (1938), “Ivan, o Terrível” (1938) e “Trilogia de Máximo Gorki” (1938). Esses últimos faziam propaganda dos Planos Quinquenais impostos pelo regime de Stalin. Pelo sim, pelo não, a URSS fora um dos pouquíssimos países que não sofrera com a grande crise pois tinha sua economia fechada e comandada a pulsos de ferro pelo “Homem de Aço”.

Carl Denham e o capitalismo predatório

Carl Denham é um cineasta ambicioso que visa terminar seu filme a todo custo. Trata-se da personaficação do capitalismo predatório, que explora os recursos naturais até a exaustão, que visa a expansão dos negócios independentemente do quão prejudicial o mesmo está sendo para o meio ambiente e para a humanidade.

Se essa prática já era comum na década de 30, nos dias atuais não deixa de ser diferente. A organização com foco exclusivamente no capital, sem que haja qualquer responsabilidade social e ambiental, transforma a vida no planeta.

No Brasil, cerca de 1% dos mais ricos possuem quase a mesma renda dos 50% mais pobres do país; mais de 6 milhões de pessoas vivem em favelas e assentamentos; quase 42 milhões de pessoas não possuem acesso simultâneo a serviços de água, esgoto e coleta de lixo. Todo esse panorama explica os altos índices de mortalidade infantil, problemas na área da saúde e o aumento da criminalidade.

O meio ambiente também sofre com as imposição financeiras no modo de vida humano. O desmatamento da floresta amazônica já chegou a 680 mil quilômetros quadrados, uma área equivalente a França e Portugal juntos, tendo como principais causas a extração de madeira, a agricultura, e a pecuária.

Ao estender esta mesma análise para todo o mundo, chega-se a um quadro marcado por catástrofes naturais levando milhares de pessoas à morte. Somado a isso há a submissão da população de diversas áreas do globo à condições subumanas de sobrevivência ou à problemas referentes a criminalidade e a saúde por serem incapazes de responderem favoravelmente à lógica de mercado e à do capital,.

Esses problemas provocam uma preocupação ainda maior quando as previsões alertam para o agravamento do quadro e poucas ações são realizadas para que ele seja revertido.

Ann Darrow e Jack Driscoll – a antítese da ordem mercenária

Ann Darrow é a bela por quem Kong se apega e Jack Driscoll é o roteirista do filme dirigido por Carl Denham. Ambos representam claramente a resistência ao mundo movido pelo capital. Dedicam-se ao trabalho pelo qual apreciam e sentem prazer de exercê-lo independentemente se são eficazes ao se reverterem em dividendos financeiros ou não. Esses personagens são representantes, na ficção, das Organizações Não Governamentais que arregimentam voluntários por todo o mundo para lutar e reivindicar por condições justas e representam também o sem-número de indivíduos que escolhem suas profissões com a consciência focada na contribuição a ser deixada ao mundo e não somente em questões como empregabilidade, retorno financeiro, e outros do gênero.


Kong – a certa condenação da natureza bruta contaminada pela mais humana das propriedades: o sentimento


A fera é indiscutivelmente superior ao homem em seu habitat. Infinitamente mais forte, mais ágil e adaptado ao ambiente em que vive. Todavia apresenta algo incomum: contraria sua natureza

A natureza de uma aranha, por exemplo, a fará tecer teias, capturar insetos, se reproduzir, etc. Ela jamais agirá contra sua natureza, mesmo que esse condicionamento decrete, em uma certa circunstância, a sua morte. Isto coloca o inseto em perfeito equilíbrio com o meio ambiente. Contudo, o enorme distanciamento que ocorre dos instintos naturais até a consciência do homem moderno reflete no modo de vida em desarmonia com a natureza: espécies são instintas, rios, mares e ar são poluídos, florestas são devastadas, tudo isso provocando efeitos que muitas vezes resultam na queda da qualidade de vida ou em catástrofes que levam à destruição em massa. Um outro fator é o sistema econômico que condiciona o homem na busca da lucratividade mesmo que, em contrapartida, ela tenha que conviver com a miséria, a desigualdade, as doenças, muitas vezes até tirando proveito financeiro de todas essas mazelas.

Se por um lado a vontade pode destruir o homem, por outro ela pode salvá-la através da decisão dos mesmos de rever suas ações. Porém, não é o que pode ocorrer com um animal, que normalmente é movido por condicionamentos motores e instintos de sobrevivência. Ao se revestir de sentimentos, o destino deste só pode ser a morte. O sentimento condicionado, sem a razão como balizadora, tem como destino certo a destruição.

Experimentando o mais humano das propriedades, isto é, o sentimento. Os sentimentos que provocam a vontade e o juízo de valor, são ao mesmo tempo a maior força como também a maior fraqueza dos seres humanos. A maior força, porque é a vontade que impulsiona o homem a transformar sua realidade, entretanto, também é sua maior fraqueza porque a sua inconstância coloca o homem em desequilíbrio com a natureza. Ele pode fazer escolhas que contrariam a harmonia natural do ambiente em que vive, com isso ele contamina sua própria cama e o destino poderá dizer que essa mesma cama sufocou o homem enquanto ele dormia.

Considerações Finais


Para o filósofo Jean-Jacques Rousseau a civilização, ou pelo menos o mundo civilizado tal como constituído, levam o homem à uma uniformidade artificial de comportamento levando-os a ignorar os deveres humanos e suas necessidades naturais.

Tais necessidades resumem todas as ações e comportamentos que garantem a preservação da raça humana. Se há a desigualdade, a fome, a miséria, as doenças, isto significa que o individualismo está sendo demasiadamente valorizado em detrimento dos reais deveres humanos e das necessidades coletivas.

O pensamento de Rousseau combate os abusos da sociedade civilizada repudiando a “perda da consciência conduzida pelo refinamento das mentiras convencionais” e a submissão das ciências e das artes aos “caprichos frívolos das modas passageiras”, valorizando também os avanços e as conquistas reais do intelecto humano na ação de resolver seus problemas no seu sentido coletivo.

Rousseau ainda afirmava que há uma diferença entre a “vontade de todos” e a “vontade geral”. A primeira atende aos interesses particulares com maior representatividade, a segunda atende aos interesses comuns. Aquela pode ser manipulada para atender interesses de uma minoria, enquanto que esta “é dirigida para o bem comum”.

O filósofo de Genebra acreditava que o indivíduo agindo não como um ser isolado mas como parte de um todo, pode vivenciar um verdadeira experiência social de fraternidade e igualdade. Tudo isso é possível pois o homem é possuidor da razão e assim, pode escolher seu caminho.

Leitura recomendada

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza - Como acabar com a miséria mundial nos próximos 20 anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Atualidades Vestibular 2006. Almanaque Abril.