Ensaios sobre Cinema, Filosofia e Educação

Notas pessoais sobre cinema, filosofia e educação

sexta-feira, dezembro 22, 2006

O cínico Diógenes e o filme "Clube da luta"

"Clube da Luta" foi lançado em 1999 e é dirigido por David Fincher, mesmo diretor de "O quarto em pânico", "Vidas em jogo", "Os sete crimes capitais" e "Alien 3". Seu roteiro é baseado no romance homônimo de Chuck Palahniuk.

Este é um filme em que, diga-se de passagem, trabalha um ator talentoso chamado Brad Pitt, e não a “mercadoria de prateleira" de nome Brad Pitt que acostumamos ver em seus trabalhos mais recentes.

Eu resolvi escrever sobre esta obra cinematográfica pois acredito que ela pode ser muito mal interpretada e, dessa forma, aproveito também para algumas coisas que me incomodam na nossa atual sociedade.

"Clube da Luta" é quase sempre visto como uma crítica a sociedade consumista utilizando para isto um roteiro pesado, com cenas de violência, desajustes psicológicos e sexo de mal gosto. Há quem diga que o filme faz uma certa apologia ao terrorismo.


Eu rebato com veemência esta visão distorcida através de dois argumentos simples: primeiro, o cinema é uma arte e como arte deve ser visto e, segundo, nossa cultura nos impulsiona a cometer o péssimo hábito de encarar as coisas tal como nos convém.


Atualmente a indústria cinematográfica ex
plora o cinema muito mais como produto de entretenimento do que como manifestação estética. Entretanto, não se pode tomar este primeiro aspecto a ponto de canonizá-lo como um critério para classificar filmes como bons ou ruins. Nem todas as obras são criadas como "produto de diversão". Há também trabalhos que visam levar ao público uma visão de mundo de forma reflexiva, cujo estilo muitas vezes foge do convencional exigindo uma certa sensibilidade para compreendê-lo.

José Ortega y Gasset afirma, em seu texto sobre a desumanização da arte, que o ponto de vista sobre qualquer coisa é uma mera questão de ótica. Seria algo como visualizar um jardim através de uma vidraça. Nós podemos tanto focar o jardim e ignorar o vidro como também o contrário. Porém, quando se trata de uma obra de arte, a questão se torna mais complexa. Tomando "Clube da Luta" como exemplo, se centrarmos nossa atenção nas cenas violentas, no sangue, nos palavrões, no sexo animal, etc, não estamos visualizando a arte, mas sim os personagens tal como seres humanos em um contexto que, embora se trate de uma ficção, esteja retratando uma certa realidade. Isto é um erro, pois assim a mensagem do cineasta se perde e a obra é taxada de forma inadequada.


A obra de arte, neste caso "Clube da Luta", precisa ser desumanizada. As cenas violentas não são coisas concretas, mas sim, sobretudo, formas de expressão que podem ou não estar próximas de uma determinada realidade.

Um outro ponto importante é a cultura da conveniência que faz com que as pessoas rejeitem manifestações que afrontam uma visão de mundo romântica. Trata-se de um comportamento que busca a alienação porque tal estado as coloca em uma posição cômoda e confortável. Esses indivíduos evitam os problemas e fazem questão de não querer saber deles ou encará-los de frente.

Embora o tema violência enquanto problema social não seja o foco do filme, eu acho que vale citar que é inútil ignorar que a violência esteja presente em todas as sociedades. Não adianta fazer de conta que a brutalidade também faz parte da natureza humana.

Enquanto muitos fazem isso, este problema age como cupins no interior de uma grande mansão. Ao passo que todos permanecem admirando o suntuoso edifício, os insetos tratam de devora-lo por dentro até que atinjam a superfície e façam com que as pessoas se dêem conta que o abrigo estava oco, doente, e pior, que não fizeram nada enquanto ainda podiam.

É fácil observar que a grande maioria das pessoas projetam suas realidades particulares como se fossem as realidades de todos, contemplando, assim, um mundo perfeito e justo. Elas se mantém distantes dos problemas que assolam a humanidade e da noção real da natureza humana. Com isso, não é de se admirar que se chega o momento que o verniz se desgasta e os males que outrora eram ignorados passam consumir aqueles que o ignoraram.


Não adianta também admirar os romances de Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, lordes ingleses e plebéias, e repudiar retratos que mostrem também outros lados dos relacionamentos humanos que não são tão coloridos, que colocam abertamente que as pessoas também mentem, trapaceiam, machucam, matam, fazem sexo como animais, etc.


Em resumo, eu vejo que normalmente "Clube da Luta" é rejeitado injustamente por dois motivos: as pessoas centram o foco no aspecto da violência, deixando se perder a mensagem do filme, ao mesmo tempo que repudiam o fato de a obra constatar que somos humanos e não anjos, príncipes ou princesas da terra do nunca, considerando ainda que o faz demonstrando que isso tudo não é ruim, que é possível alcançar a sabedoria e o conhecimento nestas circunstâncias.


Tyler Durden e o filósofo grego Diógenes


O narrador do filme (Edward No
rton) trabalha como investigador de seguros e considera-se "escravo do consumismo instintivo caseiro". Tudo que ele via nos catálogos tinha que comprar, tais como "uma mesinha de café formato yin-yang, conjunto de escritório Klipsk, bicicleta ergométrica Hovetrekke, sofá Ohamshab, abajur Ryslampa de papel biodegradável", etc. Ele chegava a se perguntar que "tipo de porcelana o definia como pessoa".

Seguiu sua vida entre o trabalho e as terapias que fazia para curar seu problema de insônia até que conheceu, em uma viagem de avião, o vendedor de sabão Tyler Durden (Brad Pitt).


Daí por diante sua vida mudou drasticamente. Logo de início, Tyler demonstrou que via a realidade social tal como um camisa de força, repleta de simulacros, que se apresenta em uma seqüência encaixada e linear, com o fim de tornar as pessoas obcecadas por um estilo de vida.

Tyler, então, convida o narrador a livrar-se da auto-exigência de ser completo, perfeito, ou seja, de responder as tiranias de uma sociedade meritocrática, pois, no final das contas, as coisas que nós possuímos acabam por nos possuir uma vez que fazem-nos sempre querer mais do que o necessário em um círculo interminável.

Contudo, Tyler leva o narrador
para morar consigo em uma casa que estava prestes a ser demolida, com as janelas tapadas, sem tranca nas portas, com suas escadas de acesso aos cômodos superiores comprometidas, prestes a desabar. As lâmpadas da casa não funcionavam direito e a água encanada era barrenta sendo praticamente imprópria para qualquer tipo de uso. Quando chovia eles tinham que desligar a energia elétrica para evitar curto-circuitos e incêndios. Não possuíam TV nem geladeira. Para Tyler, era necessário esse desapego as coisas materiais e a uma determinada ordem social para que pudessem se libertar definitivamente da máscara social que fora forjada em seus rostos.

Particularmente, eu considero este comportamento parecido com o qual era defendido pelo grego Diógenes no século IV ou V a.C. Esse filósofo foi o maior expoente do cinismo, corrente filosófica da era helenística que desprezava qualquer tipo de prazer, paixões e vínculos sociais. Diógenes entendia a sabedoria como uma recusa da vida comum e andava pela cidade de Atenas tal como um mendigo, pregando o ascetismo, o retorno a vida natural, o abandono de atividades intelectuais e o desprezo pela comodidade. Ele morava em um barril e fazia suas necessidades fisiológicas em público.

A mais célebre frase deste pensador é: "procuro o homem". Ele a proferia andando pela cidade com uma lanterna acesa em plena luz do dia. Trata-se de uma inteligente ironia e significa a procura, a busca pelo homem que sabe ser feliz, vivendo de acordo com a sua mais pura essência, deixando para trás qualquer tipo de exterioridade e convenção social. Esse pensamento revela também o aspecto de que tudo o que é necessário para alcançar a felicidade está ao alcance de todos, sem exceção.

Há um relato sobre Diógenes em que certa vez ele avistara um rato correndo de um lado para o outro sem qualquer objetivo. Diante desta cena, o filósofo então diz que o animal é quem dita o modo de viver do cínico: uma vida sem objetivo, ou ao menos sem as metas que a sociedade propõe como necessária, sem moradia e sem as comodidades oferecidas pelo progresso.

Para os cínicos, este modo de viver representa a liberdade pois quanto menos necessidades supérfluas se possui, mais se é livre. Além de amolecer o físico e o espírito, os prazeres fazem com que o homem se torne escravo das coisas e dos costumes.


De um modo geral, a denúncia cínica aponta como ilusão a busca da felicidade através dos prazeres, riqueza, poder, fama, brilho e sucesso.


Contrariando o costume corrente de valorizar a cultura grega ao extremo, Diógenes afirmara que ele era um cidadão do mundo. Trata-se de uma afirmação bastante coerente com o seu pensamento tendo em vista que as cidades, fronteiras, legislações, etc, seriam formas de controle e, portanto, uma agreção a natureza humana. Eis aqui o prelúdio do anarquismo, uma idéia que já passou por muitas turbulências mas que se torna relativamente possível no mundo globalizado da atual era da informação. Em outra oportunidade, discutiremos sobre isso!


Diógenes então dedica especial atenção ao corpo pois considera que é imperativo conseguir temperar o exercício físico e a fadiga e assim poder renegar aos prazeres desnecessários a natureza do corpo humano. Com base nesta teoria, é possível entender o comportamento de Tyler que aprecia a luta corporal para testar e, ao mesmo tempo, desenvolver os limites do seu físico, libertando-se progressivamente dos desejos pelas comodidades próprias da vida em sociedade. E não é só isso. Tyler também torna a luta um tipo de terapia para a cura de problemas emocionais e psicológicos. Com isso cria o Clube da Luta que era constituído por um grupo de pessoas que lutavam entre si para resolver seus problemas e frustrações.


Tyler parece ser a própria encarnação de Diógenes pois ambos apresentam atitudes análogas. O filósofo, por exemplo, fazia questão de chocar as pessoas com seus hábitos excêntricos. Alguns dizem que ele se masturbava nas praças públicas, na frente das pessoas. Era chamado de “Cão”, pois, certa vez, passando por uma festa teriam-lhe jogado ossos e sua atitude imediata foi urinar sobre esses restos jogados pela elite ateniense. Fez isso para demonstrar o quanto desprezava o status social e as coisas relacionadas a boa vida. O personagem do filme, também não fica atrás. O seu comportamento sexual não é nem um pouco convencional. Como é projetista de cinema, freqüentemente insere em filmes familiares, películas com cenas impróprias que foram cortadas de filmes para adultos. Faz isso apenas para indignar o público. Tyler até mesmo prepara os alimentos no restaurante em que trabalha com sua urina. Além disso, se diverte provocando as pessoas na rua e não faz nenhuma questão de ter a aprovação das mesmas.

Considerações finais

Seja intencionalmente ou não, "Clube da Luta" apresenta de forma muito interessante a filosofia cínica. No entanto, como esses conceitos podem ser importantes para nós?

O primeiro aspecto é sobre o que é importante para se viver. Tyler demonstra que tudo se trata de uma questão de escolha e adaptação. Há muitos exemplos que podem ser comentados, mas um elemento que é muito discutido nos dias atuais é a tecnologia. Embora ela tenha proporcionado um bem estar substancial à humanidade, aumentando a expectativa de vida, melhorando as condições de tratamento de doenças, de alimentação, etc, é muito comum a postura em que se assume a não possibilidade de viver ou agir sem esta ferramenta.


Na área da educação, por exemplo, há muitos que de forma muito simplista, declaram que não se pode pensar em ensino e aprendizagem sem a consideração da tecnologia. Não há dúvida que as ferramentas tecnológicas sejam importantes mas há um certo exagero nesta afirmação.

Muitas coisas são possíveis sem a tecnologia. Afirmo ainda que, sem ela, talvez ocorra um desenvolvimento muito mais profícuo da criatividade e da inventividade. No cinema, por exemplo, antes da computação gráfica, era necessário um trabalho de engenhosidade admirável para criar os efeitos especiais.


Além disso, o filme ainda nos deixa um recado importante: não entregue sua vida as máquinas pois chega-se o momento em que ao invés de ela servir a você, é você que a servirá, pois, sem perceber, resumirá suas ações em atender a obsessão de manter ou fazer ascender o seu estilo de vida artificial promovido pela tecnologia.


Um segundo aspecto é o tão discutido tema do consumismo. Eu vejo um equívoco combatê-lo como se ele fosse uma doença, um câncer. O que na verdade é importante, é o consumo consciente, feito sem a hipnotização proporcionada pelo marketing e pelos meios de comunicação em massa. De igual modo, é fundamental não admitir a desigualdade social, o que uma grande maioria o faz por considerar ingenuamente que o sistema oferece oportunidades e que cada um tem aquilo que merece. O fato é que há uma grande parcela da humanidade que jamais teve a chance de merecer os regalos da classe média.

Tudo isso seria possível, diria o nosso grande Diógenes, através do conhecimento de nossas reais necessidades, da constatação de que muito do que temos não é necessário, mas sim, apenas possível e, portanto, supérfluo.


O terceiro aspecto tratado no filme
, e de igual importância, é sobre o que é necessário para ser feliz, um assunto que também foi muito bem discutido no filme "A vida de David Gale".

De uma forma geral, em uma sociedade consumista, é comum a visão de que a aquisição de bens e o sucesso profissional sejam sinônimos de felicidade.


Sobre esta importante questão eu gostaria de pegar carona no pensamento de Lacan, um dos grandes estudiosos de Freud, que dizia que a "fantasia é a verdadeira sustentação do desejo", ou seja, depois que conquistamos algo que desejávamos arduamente como objeto necessário a nossa felicidade, nós tendemos a minimizá-lo em termos de importância.


É neste sentido que há o ditado "cuidado com o que deseja", não porque conseguirá de fato conquistá-lo, mas porque quando isto acontecer, talvez não o quererá mais.


Por isso eu acredito que a felicidade não é construída através dos títulos, das conquistas profissionais, de aquisições materiais, etc. Tudo isto é muito bom porém apenas produzem sensações agradáveis e momentâneas pois depois que as alcançamos sempre desejaremos mais.

Em “A vida de David Gale", um personagem afirma: “como dizia Lacan, viver de desejos não traz a felicidade. O verdadeiro significado de ser humano é a luta para viver por idéias e ideais, não medir a vida pelo que obtiveram em termos de desejos, mas pelos momentos de integridade, compaixão, racionalidade e até mesmo auto-sacrifício. Porque no final a única forma de medir o significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros”.

No final, "Clube da Luta" toma um rumo inesperado mas duas coisas me chamaram bastante a atenção. Tal como previa Tyler, quando o narrador atinge o “fim do poço” desvencilhando-se de seus apegos da vida material, ele encontra então a si mesmo e com isso consegue se libertar de seus problemas ou, ao menos, torna-se consciente deles e consegue dominá-los. Entretanto, ele se dá conta também que isto aconteceu tarde demais, pois teria participado de um plano para destruir os principais edifícios de um centro financeiro de uma grande cidade.

Sobre este aspecto eu não me arrisco a comentar muito pois eu acredito que é o fórum íntimo de cada um que deve julgar se o narrador fez a coisa certa ou não. Não considero seguro nem mesmo discutir a questão sob o ponto de vista ético pois este mesmo sistema econômico baseado no capital financeiro de propriedade privada é, por si só, anti-ético e obsceno tendo em vista as desigualdade sociais que provoca e a degradação ambiental que desencadeia.

Sobre este último tema em particular, também tratou o excelente filme “V de Vingança”. Quem sabe, não discutimos sobre este assunto na próxima vez?